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quinta-feira, 6 de junho de 2013

Média aritmética-geométrica e a curva lemniscata.

Considere o seguinte problema que pode ser encontrado na maioria dos livros introdutórios de Análise Real: 
Seja 0 < a < b dois números reais. Defina as sequências (a_n)_{n\in\mathbb{N}} e (b_n)_{n\in\mathbb{N}} por a_1 = a, b_1 = b
a_{n+1} = \sqrt{a_n b_n} \quad \text{ e }\quad b_{n+1} = \frac{a_n + b_n}{2}, \quad (n = 1,2,3, \ldots).
Prove que estas duas sequências são convergentes e que elas convergem para o mesmo valor.

Este limite comum é o que chamamos de média aritmética-geométrica de a e b e é denotado por M(a,b). Dados a e b quaisquer, em geral, não é fácil calcular M(a,b). Em 30 de Maio de 1799, na idade de vinte e dois anos, Gauss (foto abaixo) escreveu em seu diário, que tinha verificado que a aproximação
\frac{1}{M(1,\sqrt{2})} \approx \frac{2}{\pi} \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1-t^4}} \;dt
é precisa, pelo menos até a décima primeira casa decimal.



Considere \omega como o valor da integral na equação acima, i.e.,
\omega =  \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1-t^4}} \;dt.
Então, o que o Gauss conjecturou foi que 
M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega}.
Aparentemente, fora o fato de envolver o \pi e a \sqrt{2}, esta última equação não tem nada de mais. Mas ela esconde uma relação geométrica intrigante relacionada com duas curvas famosas.


A maioria dos estudantes de Cálculo já devem ter visto a curva da figura abaixo. Ela se chama lemniscata (do latim, lemniscus que significa "faixa suspensa"). Geometricamente, a lemniscata é descrita como o lugar geométrico de pontos para qual o produto das distâncias para cada um de dois focos fixos (pontos P_1 e P_2 na figura abaixo) é uma constante (em contraste com a elipse, cuja a soma das distâncias é uma constante).



A equação da lemniscata em coordenadas cartesianas é dada por
(x^2+y^2)^2 = 2a^2(x^2-y^2),
assumindo que P_1 = (-a,0) e P_2 = (a,0). Em coordenadas polares, é dada por
r^2 = 2a^2 \cos(2\theta).
 

Sabemos, do curso de Cálculo, que o cumprimento de uma curva dada por uma função y(x) em coordenadas cartesianas ou por \theta(r) em coordenadas polares é dado por
l = \int _{x_0}^{x_1} \sqrt{1+\left( \frac{dy}{dx} \right)^2} \; dx = \int_{r_0}^{r_1} \sqrt{1+ \left( r\frac{d\theta}{dr} \right)^2} dr,
onde y(x) é definida no intervalo [x_0,x_1] e \theta(r) é definida em [r_0,r_1].

No caso da lemniscata, o comprimento de arco l da origem até o ponto no primeiro quadrante cuja a distância para origem é s é dado por
l = \int_0^s \frac{2a^2}{\sqrt{4a^4 - r^4}} \; dr.

Se considerarmos a = \frac{1}{\sqrt{2}} e s = 1 (que corresponde ao ponto mais distante da origem sobre a lemniscata no primeiro quadrante), a integral acima é dada por
l = \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1- r^4}} \; dr.

Ou seja, neste caso, temos l = \omega. Assim, temos um significado geométrico para o \omega. De fato, este número \omega desempenha um papel semelhante ao que o \pi desempenha diante do círculo unitário. Sim, pois o comprimento do círculo unitário é 2\pi, enquanto que, como vimos, o comprimento da lemniscata "unitária" é 4\omega (o comprimento ao longo de um quadrante é \omega). 

Se a conjectura de Gauss for correta, então temos que 
M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega} = \frac{2\pi}{4\omega} = \frac{\text{comprimento do círculo unitário}}{\text{comprimento da lemniscata unitária}}.

No terceiro volume do Collected Works de Gauss, podemos encontrar o seguinte
Teorema. \frac{1}{M(1,x)} = \frac{2}{\pi} \int_0^{\frac{\pi}{2}} \frac{d\theta}{\sqrt{1-(1-x^2)\sin^2(\theta)}}. 
Apesar de não parecer, a integral acima é igual a integral que Gauss conjecturou anteriormente, no seu diário, para x = \sqrt{2}, validando a sua conjectura.

Pode ser demonstrado (a nível de um curso de cálculo. Veja, por exemplo, [1]) o seguinte
Teorema. \frac{1}{M(a,b)} = \frac{2}{\pi} \int_0^{\frac{\pi}{2}} \frac{d\theta}{\sqrt{a^2\cos^2(\theta)-b^2\sin^2(\theta)}}. 
Desta maneira temos uma fórmula geral para M(a,b). Observe que, como foi dito inicialmente, M(a,b) é longe de ser calculado facilmente para quaisquer a,b >0, uma vez que a integral acima não é elementar.

Contudo, a relação
M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega}

ainda deixa uma pergunta: por que M(1,\sqrt{2})? Qual é o verdadeiro significado deste número? Por que ele está relacionado com o círculo e a lemniscata unitária?

A relação entre a média aritmética-geométrica pode ser uma daquelas situações onde a verdade é mais profunda do quê a nossa capacidade de compreendê-la.

Até a próxima.

Referências.
[1] Kenji Ueno, Koji Shiga, Shigeyuki Morita. A mathematical gift, II. The interplay between topology, functions, geometry, and algebra. American Mathematical Society, 2004.


2 comentários:

  1. Oi, Walner!

    Bonita matéria. A relação entre as partes da matemática surgem de maneira inesperada. Uma pessoa que dedicou toda uma vida à Rainha das Ciências, como Gauss, certamente tem um faro muito apurado para encontrar tais relações.

    Um abraço!

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    1. Obrigado, Aloisio!

      Concordo 100% com você. Somente um gênio como o Gauss seria capaz de deduzir coisas como essa. Gauss já foi descrito uma vez como o "gigante matemático que do alto de sua magnitude abarca num relance as estrelas e os abismos". Esta descrição encontrei no livro Introdução à História da Matemática, Howard Eves, pg.521.

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