Considere o seguinte problema que pode ser encontrado na maioria dos livros introdutórios de Análise Real:
Seja $0 < a < b$ dois números reais. Defina as sequências $(a_n)_{n\in\mathbb{N}}$ e $(b_n)_{n\in\mathbb{N}}$ por $a_1 = a$, $b_1 = b$ e$$ a_{n+1} = \sqrt{a_n b_n} \quad \text{ e }\quad b_{n+1} = \frac{a_n + b_n}{2}, \quad (n = 1,2,3, \ldots).$$Prove que estas duas sequências são convergentes e que elas convergem para o mesmo valor.
Este limite comum é o que chamamos de média aritmética-geométrica de $a$ e $b$ e é denotado por $M(a,b)$. Dados $a$ e $b$ quaisquer, em geral, não é fácil calcular $M(a,b)$. Em 30 de Maio de 1799, na idade de vinte e dois anos, Gauss (foto abaixo) escreveu em seu diário, que tinha verificado que a aproximação
$$\frac{1}{M(1,\sqrt{2})} \approx \frac{2}{\pi} \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1-t^4}} \;dt $$
é precisa, pelo menos até a décima primeira casa decimal.
Considere $\omega$ como o valor da integral na equação acima, i.e.,
$$\omega = \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1-t^4}} \;dt.$$
Então, o que o Gauss conjecturou foi que
$$ M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega}.$$
Aparentemente, fora o fato de envolver o $\pi$ e a $\sqrt{2}$, esta última equação não tem nada de mais. Mas ela esconde uma relação geométrica intrigante relacionada com duas curvas famosas.
A maioria dos estudantes de Cálculo já devem ter visto a curva da figura abaixo. Ela se chama lemniscata (do latim, lemniscus que significa "faixa suspensa"). Geometricamente, a lemniscata é descrita como o lugar geométrico de pontos para qual o produto das distâncias para cada um de dois focos fixos (pontos $P_1$ e $P_2$ na figura abaixo) é uma constante (em contraste com a elipse, cuja a soma das distâncias é uma constante).
A equação da lemniscata em coordenadas cartesianas é dada por
$$ (x^2+y^2)^2 = 2a^2(x^2-y^2),$$
assumindo que $P_1 = (-a,0)$ e $P_2 = (a,0)$. Em coordenadas polares, é dada por
$$ r^2 = 2a^2 \cos(2\theta).$$
Sabemos, do curso de Cálculo, que o cumprimento de uma curva dada por uma função $y(x)$ em coordenadas cartesianas ou por $\theta(r)$ em coordenadas polares é dado por
$$l = \int _{x_0}^{x_1} \sqrt{1+\left( \frac{dy}{dx} \right)^2} \; dx = \int_{r_0}^{r_1} \sqrt{1+ \left( r\frac{d\theta}{dr} \right)^2} dr,$$
onde $y(x)$ é definida no intervalo $[x_0,x_1]$ e $\theta(r)$ é definida em $[r_0,r_1]$.
No caso da lemniscata, o comprimento de arco $l$ da origem até o ponto no primeiro quadrante cuja a distância para origem é s é dado por
$$ l = \int_0^s \frac{2a^2}{\sqrt{4a^4 - r^4}} \; dr.$$
Se considerarmos $a = \frac{1}{\sqrt{2}}$ e $s = 1$ (que corresponde ao ponto mais distante da origem sobre a lemniscata no primeiro quadrante), a integral acima é dada por
$$ l = \int_0^1 \frac{1}{\sqrt{1- r^4}} \; dr.$$
Ou seja, neste caso, temos $l = \omega$. Assim, temos um significado geométrico para o $\omega$. De fato, este número $\omega$ desempenha um papel semelhante ao que o $\pi$ desempenha diante do círculo unitário. Sim, pois o comprimento do círculo unitário é $2\pi$, enquanto que, como vimos, o comprimento da lemniscata "unitária" é 4$\omega$ (o comprimento ao longo de um quadrante é $\omega$).
Se a conjectura de Gauss for correta, então temos que
$$M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega} = \frac{2\pi}{4\omega} = \frac{\text{comprimento do círculo unitário}}{\text{comprimento da lemniscata unitária}}.$$
No terceiro volume do Collected Works de Gauss, podemos encontrar o seguinte
Teorema. $$\frac{1}{M(1,x)} = \frac{2}{\pi} \int_0^{\frac{\pi}{2}} \frac{d\theta}{\sqrt{1-(1-x^2)\sin^2(\theta)}}. $$Apesar de não parecer, a integral acima é igual a integral que Gauss conjecturou anteriormente, no seu diário, para $x = \sqrt{2}$, validando a sua conjectura.
Pode ser demonstrado (a nível de um curso de cálculo. Veja, por exemplo, [1]) o seguinte
Teorema. $$\frac{1}{M(a,b)} = \frac{2}{\pi} \int_0^{\frac{\pi}{2}} \frac{d\theta}{\sqrt{a^2\cos^2(\theta)-b^2\sin^2(\theta)}}. $$Desta maneira temos uma fórmula geral para $M(a,b)$. Observe que, como foi dito inicialmente, $M(a,b)$ é longe de ser calculado facilmente para quaisquer $a,b >0$, uma vez que a integral acima não é elementar.
Contudo, a relação
$$M(1,\sqrt{2}) = \frac{\pi}{2\omega}$$
ainda deixa uma pergunta: por que $M(1,\sqrt{2})$? Qual é o verdadeiro significado deste número? Por que ele está relacionado com o círculo e a lemniscata unitária?
A relação entre a média aritmética-geométrica pode ser uma daquelas situações onde a verdade é mais profunda do quê a nossa capacidade de compreendê-la.
Até a próxima.
Referências.
[1] Kenji Ueno, Koji Shiga, Shigeyuki Morita. A mathematical gift, II. The interplay between topology, functions, geometry, and algebra. American Mathematical Society, 2004.
Oi, Walner!
ResponderExcluirBonita matéria. A relação entre as partes da matemática surgem de maneira inesperada. Uma pessoa que dedicou toda uma vida à Rainha das Ciências, como Gauss, certamente tem um faro muito apurado para encontrar tais relações.
Um abraço!
Obrigado, Aloisio!
ExcluirConcordo 100% com você. Somente um gênio como o Gauss seria capaz de deduzir coisas como essa. Gauss já foi descrito uma vez como o "gigante matemático que do alto de sua magnitude abarca num relance as estrelas e os abismos". Esta descrição encontrei no livro Introdução à História da Matemática, Howard Eves, pg.521.